(UNESP - 2021 - 2ª FASE)
Leia a crônica de Machado de Assis, publicada em 19.05.1888.
Eu pertenço a uma família de profetas après coup¹, post facto², depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário for, que toda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa dos seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.
Neste jantar, a que os meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.
No golpe do meio (coup du milieu³, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que, acompanhando as ideias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas ideias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.
Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio a abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembleia que correspondesse ao ato que eu acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.
No dia seguinte, chamei Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
— Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que…
— Oh! meu senhô! fico.
— … Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos…
— Artura não qué dizê nada, não, senhô…
— Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
— Eu vaio um galo, sim, senhô.
— Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.
O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes de abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar (simples suposição) é então professor de Filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.
(Machado de Assis. Crônicas escolhidas, 2013.)
1 après coup: a posteriori.
2 post facto: após o fato.
3 coup du milieu: bebida, às vezes acompanhada de brindes, que se tomava no meio de um banquete.
Para evitar a repetição de um verbo já mencionado, o narrador recorre à elipse de um verbo na frase
“Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio a abraçar-me os pés.” (4º parágrafo)
“Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote.” (4º parágrafo)
“Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu.” (8º parágrafo)
“Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade.” (13º parágrafo)
“Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.” (13º parágrafo)
Gabarito:
“Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.” (13º parágrafo)
(UNESP - 2014 - 1ª FASE)
A questão aborda um poema de Raul de Leoni (1895-1926).
A alma das cousas somos nós...
Dentro do eterno giro universal
Das cousas, tudo vai e volta à alma da gente,
Mas, se nesse vaivém tudo parece igual
Nada mais, na verdade
(5) Nunca mais se repete exatamente...
Sim, as cousas são sempre as mesmas na corrente
Que no-las leva e traz, num círculo fatal;
O que varia é o espírito que as sente
Que é imperceptivelmente desigual,
(10) Que sempre as vive diferentemente,
E, assim, a vida é sempre inédita, afinal...
Estado de alma em fuga pelas horas,
Tons esquivos e trêmulos, nuanças
Suscetíveis, sutis, que fogem no Íris
(15) Da sensibilidade furta-cor...
E a nossa alma é a expressão fugitiva das cousas
E a vida somos nós, que sempre somos outros!...
Homem inquieto e vão que não repousas!
Para e escuta:
(20) Se as cousas têm espírito, nós somos
Esse espírito efêmero das cousas,
Volúvel e diverso,
Variando, instante a instante, intimamente,
E eternamente,
(25) Dentro da indiferença do Universo!...
(Luz mediterrânea, 1965.)
Indique o verso em que ocorre um adjetivo antes e outro depois de um substantivo:
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(Unesp 2014) No último período do texto, os termos saberes e fazeres são
Tablets nas escolas
Ou seja, não é suficiente entregar equipamentos tecnológicos cada vez mais modernos sem uma perspectiva de formação de qualidade e significativa, e sem avaliar os programas anteriores. O risco é de cometer os mesmos equívocos e não potencializar as boas práticas, pois muda a tecnologia, mas as práticas continuam quase as mesmas.
Com isso, podemos nos perguntar pelos desafios da didática diante da cultura digital: o tablet na sala de aula modifica a prática dos professores e o cotidiano escolar? Em que medida ele modifica as condições de aprendizagem dos estudantes? Evidentemente isso pode se desdobrar em inúmeras outras questões sobre a convergência de tecnologias e linguagens, sobre o acesso às redes na sala de aula e sobre a necessidade de mediações na perspectiva dos novos letramentos e alfabetismos nas múltiplas linguagens.
Outra questão que é preciso pensar diz respeito aos conteúdos digitais. Os conteúdos que estão sendo produzidos para os tablets realmente oferecem a potencialidade do meio e sua arquitetura multimídia ou apenas estão servindo como leitores de textos com os mesmos conteúdos dos livros didáticos? Quem está produzindo tais conteúdos digitais? De que forma são escolhidos e compartilhados?
Ou seja, pensar na potencialidade que o tablet oferece na escola — acessar e produzir imagens, vídeos, textos na diversidade de formas e conteúdos digitais — implica em repensar a didática e as possibilidades de experiências e práticas educativas, midiáticas e culturais na escola ao lado de questões econômicas e sociais mais amplas. E isso necessariamente envolve a reflexão crítica sobre os saberes e fazeres que estamos produzindo e compartilhando na cultura digital.
(Tablets nas escolas. www.gazetadopovo.com.br. Adaptado.)
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(UNESP - 2012 - 1a Fase)
Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta e cidadão
A morte chegou pelo interurbano em longas espirais metálicas.
Era de madrugada. Ouvi a voz de minha mãe, viúva.
De repente não tinha pai.
No escuro de minha casa em Los Angeles procurei recompor tua lembrança
Depois de tanta ausência. Fragmentos da infância
Boiaram do mar de minhas lágrimas. Vi-me eu menino
Correndo ao teu encontro. Na ilha noturna
Tinham-se apenas acendido os lampiões a gás, e a clarineta
De Augusto geralmente procrastinava a tarde.
Era belo esperar-te, cidadão. O bondinho
Rangia nos trilhos a muitas praias de distância...
Dizíamos: “Ê-vem meu pai!”. Quando a curva
Se acendia de luzes semoventes*, ah, corríamos
Corríamos ao teu encontro. A grande coisa era chegar antes
Mas ser marraio** em teus braços, sentir por último
Os doces espinhos da tua barba.
Trazias de então uma expressão indizível de fidelidade e paciência
Teu rosto tinha os sulcos fundamentais da doçura
De quem se deixou ser. Teus ombros possantes
Se curvavam como ao peso da enorme poesia
Que não realizaste. O barbante cortava teus dedos
Pesados de mil embrulhos: carne, pão, utensílios
Para o cotidiano (e frequentemente o binóculo
Que vivias comprando e com que te deixavas horas inteiras
Mirando o mar). Dize-me, meu pai
Que viste tantos anos através do teu óculo de alcance
Que nunca revelaste a ninguém?
Vencias o percurso entre a amendoeira e a casa como o atleta [exausto no último lance da maratona.
Te grimpávamos. Eras penca de filho. Jamais
Uma palavra dura, um rosnar paterno. Entravas a casa humilde
A um gesto do mar. A noite se fechava
Sobre o grupo familial como uma grande porta espessa.
Muitas vezes te vi desejar. Desejavas. Deixavas-te olhando o mar
Com mirada de argonauta. Teus pequenos olhos feios
Buscavam ilhas, outras ilhas... — as imaculadas, inacessíveis
Ilhas do Tesouro. Querias. Querias um dia aportar
E trazer — depositar aos pés da amada as joias fulgurantes
Do teu amor. Sim, foste descobridor, e entre eles
Dos mais provectos***. Muitas vezes te vi, comandante
Comandar, batido de ventos, perdido na fosforência
De vastos e noturnos oceanos
Sem jamais.
Deste-nos pobreza e amor.
A mim me deste
A suprema pobreza: o dom da poesia, e a capacidade de amar
Em silêncio. Foste um pobre. Mendigavas nosso amor
Em silêncio. Foste um no lado esquerdo. Mas
Teu amor inventou. Financiaste uma lancha
Movida a água: foi reta para o fundo. Partiste um dia
Para um brasil além, garimpeiro sem medo e sem mácula.
Doze luas voltaste. Tua primogênita — diz-se —
Não te reconheceu. Trazias grandes barbas e pequenas águas-marinhas.
(Vinicius de Moraes. Antologia poética. 11 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1974, p. 180-181.)
(*) Semovente: “Que ou o que anda ou se move por si próprio.”
(**) Marraio: “No gude e noutros jogos, palavra que dá, a quem primeiro a grita, o direito de ser o último a jogar.
(***) Provecto: “Que conhece muito um assunto ou uma ciência, experiente, versado, mestre.”
(Dicionário Eletrônico Houaiss)
Em Partiste um dia / Para um brasil além, garimpeiro sem medo e sem mácula., o emprego da palavra brasil com inicial minúscula, no poema de Vinicius, tem a seguinte justificativa:
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(UNESP - 2011 - 1ª FASE) A questão toma por base um fragmento do livro Comunicação e folclore, de Luiz Beltrão (1918-1986).
O Bumba-Meu-Boi
Entre os autos populares conhecidos e praticados no Brasil – pastoril, fandango, chegança, reisado, congada, etc. – aquele em que melhor o povo exprime a sua crítica, aquele que tem maior conteúdo jornalístico, é, realmente, o bumba-meu-boi, ou simplesmente boi.
Para Renato Almeida, é o “bailado mais notável do Brasil, o folguedo brasileiro de maior significação estética e social”. Luís da Câmara Cascudo, por seu turno, observou a sua superioridade porque “enquanto os outros autos cristalizaram, imóveis, no elenco de outrora, o bumba-meu-boi é sempre atual, incluindo soluções modernas, figuras de agora, vocabulário, sensação, percepção contemporânea. Na época da escravidão mostrava os vaqueiros escravos vencendo pela inteligência, astúcia e cinismo. Chibateava a cupidez, a materialidade, o sensualismo de doutores, padres, delegados, fazendo-os cantar versinhos que eram confissões estertóricas. O capitão-do-mato, preador de escravos, assombro dos moleques, faz sono dos negrinhos, vai ‘caçar’ os negros que fugiram, depois da morte do Boi, e em vez de trazê-los é trazido amarrado, humilhado, tremendo de medo. O valentão mestiço, capoeira, apanha pancada e é mais mofino que todos os mofinos. Imaginem a alegria negra, vendo e ouvindo essa sublimação aberta, franca, na porta da casa-grande de engenho ou no terreiro da fazenda, nos pátios das vilas, diante do adro da igreja! A figura dos padres, os padres do interior, vinha arrastada com a violência de um ajuste de contas. O doutor, o curioso, metido a entender de tudo, o delegado autoritário, valente com a patrulha e covarde sem ela, toda a galeria perpassa, expondo suas mazelas, vícios, manias, cacoetes, olhada por uma assistência onde estavam muitas vítimas dos personagens reais, ali subalternizados pela virulência do desabafo”.
Como algumas outras manifestações folclóricas, o bumba-meu- boi utiliza uma forma antiga, tradicional; entretanto, fá-la revestir-se de novos aspectos, atualiza o entrecho, recompõe a trama. Daí “o interesse do tipo solidário que desperta nas camadas populares”, como o assinala Édison Carneiro. Interesse que só pode manter-se porque o que no auto se apresenta não reflete apenas situações do passado, “mas porque têm importância para o futuro”. Com efeito, tendo por tema central a morte e a ressurreição do boi, “cerca-se de episódios acessórios, não essenciais, muito desligados da ação principal, que variam de região para região... em cada lugar, novos personagens são enxertados, aparentemente sem outro objetivo senão o de prolongar e variar a brincadeira”. Contudo, dentre esses personagens, os que representam as classes superiores são caricaturados, cobrindo-se de ridículo, o que torna “o folguedo, em si mesmo, uma reivindicação”.
Sílvio Romero recolheu os versos de um bumba-meu-boi, através dos quais se constata a intenção caricaturesca nos personagens do folguedo. Como o Padre, que recita:
Não sou padre, não sou nada
“Quem me ver estar dançando
Não julgue que estou louco;
Secular sou como os outros”.
Ou como o Capitão-do-Mato que, dando com o negro Fidélis, vai prendê-lo:
“CAPITÃO – Eu te atiro, negro
Eu te amarro, ladrão,
Eu te acabo, cão.”
Mas, ao contrário, quem vai sobre o Capitão e o amarra é o Fidélis:
“CORO – Capitão de campo
Veja que o mundo virou
Foi ao mato pegar negro
Mas o negro lhe amarrou.
CAPITÃO – Sou valente afamado
Como eu não pode haver
Qualquer susto que me fazem
Logo me ponho a correr”.
(Luiz Beltrão. Comunicação e folclore. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1971.)
O capitão-do-mato, preador de escravos, assombro dos moleques, faz-sono dos negrinhos, vai ‘caçar’ os negros que fugiram (...).
Nesta passagem, levando-se em conta o contexto, a função sintática e o significado, verifica-se que faz-sono é:
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