Questão 38054

TEXTO PARA A PRÓXIMA QUESTÃO:

Leia o texto a seguir para responder à(s) questão(ões).

 

Um leitor de La Repubblica perguntou o que podemos fazer para escapar da situação alarmante em que nos encontramos depois da crise do crédito e como evitar suas consequências possivelmente catastróficas.

Essas são perguntas que nos fazemos todos os dias; afinal, não foi só o sistema bancário e a bolsa de valores que sofreram duros e sucessivos golpes – nossa confiança nas estratégias de vida, nos modos de agir, nos padrões de sucesso e no ideal de felicidade que, dia após dia, nos últimos anos, nos disseram que valia a pena seguir também foi abalada e perdeu parte considerável de sua autoridade e poder de atração. Nossos ídolos, versões líquido-modernas do bezerro de ouro bíblico, derreteram ao mesmo tempo que a confiança na economia!

Pensando em retrospecto, os anos anteriores à crise do crédito parecem ter sido tempos tranquilos e alegres do tipo “aproveite agora, pague depois”; uma época em que nós agíamos com a certeza de que haveria riqueza suficiente e até maior no dia seguinte, anulando qualquer preocupação com o crescimento das dívidas de hoje, desde que fizéssemos o que se exigia para aderir aos “caras mais inteligentes da turma” e seguir seu exemplo. Naqueles dias que ficaram para trás, o exercício de subir montanhas cada vez mais altas e ter acesso a paisagens cada vez mais arrebatadoras, eclipsar as grandiosas montanhas de ontem com o perfil das colinas de hoje e aplainar as colinas de ontem na gentil ondulação das planícies de hoje parecia durar para sempre.

Uma possível reação à crise econômica atual é o que Mark Furlong denominou de “militarização do eu”. É o que vão fazer, sem dúvida, os produtores e comerciantes interessados em capitalizar a catástrofe transformando-a em lucro acionário, como de hábito. A indústria farmacêutica já está em plena atividade, tentando invadir, conquistar e colonizar a nova “terra virgem” da depressão pós-crise a fim de vender sua “nova geração” de smart drugs, começando por semear, cultivar e fazer crescer as novas ilusões que tendem a propulsionar a demanda. Já estamos ouvindo falar de drogas fantásticas que prometem “melhorar tudo”, memória, humor, potência sexual e a energia de quem as ingere com regularidade, proporcionando assim total controle sobre a construção do próprio ego e sua preponderância sobre o ego de outros.

 

Contudo há outra possibilidade. Existe a opção de tentar chegar às raízes do problema atual e (como sugeriu Furlong) “fazer o contrário do que estamos acostumados: inverter o padrão e organizar nosso pensamento não mais a partir daquele em que o ‘indivíduo’ está no centro, mas segundo uma ordem alternativa centrada em práticas éticas e estéticas que privilegiem a relação e o contexto”.

Trata-se, sem dúvida, de uma possibilidade remota (inverossímil ou pretensiosa, diriam alguns), que exige um período prolongado, tortuoso e muitas vezes doloroso de autocrítica e reajuste. Nascemos e crescemos numa sociedade completamente “individualizada”, na qual a autonomia, a autossuficiência e o egocentrismo do indivíduo eram axiomas que não exigiam provas (nem as admitiam), e que dava pouco espaço, se é que dava, à discussão. Só que mudar nossa visão de mundo e assumir uma compreensão adequada do lugar e do papel que temos na sociedade não é fácil nem se faz de um dia para o outro. No entanto, essa mudança parece ser imperativa, na verdade, inevitável.

 

BAUMAN, Zygmunt. Como escapar da crise? In: 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno. Tradução Vera Pereira. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 161-165. Tradução de: 44 Letters from the Liquid Modern World. Adaptado.

O aspecto linguístico do texto e seus efeitos de sentido estão devidamente analisados em

A

A forma verbal “fazemos” (ref. 3) destaca uma ação reflexiva praticada pelo interlocutor do texto, que assume posturas diferentes do próprio autor.   

B

A expressão “versões líquido-modernas do bezerro de ouro bíblico” (ref. 8) é um aposto metafórico, evidenciando uma relação por similaridade da importância dada a um ícone bíblico, no passado, e aos “ídolos”, no presente.  

C

A oração “de que haveria riqueza suficiente” (ref. 12) é um complemento verbal que traduz uma ideologia que se concretizou somente no presente, modificando os modos de agir e as estratégias para viver.   

D

O termo “se”, em “o que se exigia” (ref. 13) possui o mesmo valor morfossintático do “se”, presente em “Trata-se” (ref. 17), visto que, nas duas estruturas, ele permite a indeterminação do agente verbal, consolidando o discurso imparcial e distanciado do locutor.   

E

O prefixo, nos vocábulos “inverossímil” (ref. 18), “indivíduo” (ref. 19), “imperativa” (ref. 21) e “inevitável” (ref. 22), apresenta a mesma função, que é a de derivar vocábulos que denotam ideia de privação ou negação.

Gabarito:

A expressão “versões líquido-modernas do bezerro de ouro bíblico” (ref. 8) é um aposto metafórico, evidenciando uma relação por similaridade da importância dada a um ícone bíblico, no passado, e aos “ídolos”, no presente.  



Resolução:

[A] Incorreta. O trecho “Essas são perguntas que nos fazemos todos os dias” indica uma ação reflexiva praticada tanto pelo autor quanto por seus leitores.

[B] Correta. O trecho “Nossos ídolos, versões líquido-modernas do bezerro de ouro bíblico, derreteram ao mesmo tempo que a confiança na economia!” apresenta a expressão “versões líquido-modernas do bezerro de ouro bíblico” com a função de aposto explicativo do termo que o antecede, “ídolos”; além disso, busca-se a comparação entre a situação contemporânea e o bezerro de ouro, o falso ídolo segundo a Bíblia, metáfora para riqueza material.

[C] Incorreta. O emprego do verbo “haveria” no futuro do pretérito do Indicativo indica uma ação concreta, caso uma possibilidade passada se consolidasse (“desde que fizéssemos o que se exigia para aderir aos “caras mais inteligentes da turma” e seguir seu exemplo”).

[D] Incorreta. Em “o que se exigia”, a partícula se é um pronome apassivador, uma vez que o verbo exigir é transitivo direto; já em “trata-se”, a mesma partícula é índice de indeterminação do sujeito.

[E] Incorreta. Em “indivíduo” e “imperativo”, “in” não é prefixo, mas parte do radical de ambas 

palavras. Por outro lado, em “inverossímil” e “inevitável” há prefixo in-, cujo significado está relacionado à privação ou negação.

 



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