Questão 43930

(ENEM - 2019 - PROVA AMARELA)

A viagem

Que coisas devo levar
nesta viagem em que partes?
As cartas de navegação só servem
a quem fica.
Com que mapas desvendar
um continente
que falta?
Estrangeira do teu corpo
tão comum
quantas línguas aprender
para calar-me?
Também quem fica
procura
um oriente.
Também a quem fica
cabe uma paisagem nova
e a travessia insone do desconhecido
e a alegria difícil da descoberta.
O que levas do que fica,
o que, do que levas retiro?

MARQUES, A. M. In: SANT’ANNA, A. (Org.). Rua Aribau. Porto Alegre: Tag, 2018.

A viagem e a ausência remetem a um repertório poético tradicional. No poema, a voz lírica dialoga com essa tradição, repercutindo a

A

saudade como experiência de apatia.

B

presença da fragmentação da identidade.

C

negação do desejo como expressão de culpa.

D

persistência da memória na valorização do passado.

E

revelação de rumos projetada pela vivência da solidão.

Gabarito:

revelação de rumos projetada pela vivência da solidão.



Resolução:

A) INCORRETA: O poema, dimensionado, sim, pela saudade, não revela um horizonte de apatia. Vemos um eu lírico que é transformado pela experiência da separação. "Também a quem fica/ cabe uma paisagem nova/ e a travessia insone do desconhecido/ e a alegria difícil da descoberta.";

B) INCORRETA: Não percebemos uma fragmentação da identidade (ou seja, uma quebra em diversas partes, facetas), mas sim um esvaziamento dessa identidade. Ela se perde, e não se fragmenta, como vemos em: "Com que mapas desvendar/ um continente/ que falta?"; 

C) INCORRETA: O eu lírico, nesse poema, não revela um sentimento de culpa, e tampouco nega seu desejo. Há, por outro lado, um desejo por conhecer o desconhecido, de ter direito a novos horizontes diante da ausência do outro. As perguntas dirigidas a um "tu" transferem a responsabilidade do ocorrido a esse tu, mas não numa culpa nostálgica - mas sim motivadora da busca do eu; 

D) INCORRETA: Vemos que a direção existencial do poema não é o passado, e sim o futuro ("Que coisas devo levar/ nesta viagem em que partes?", "cabe uma paisagem nova"; "e a alegria difícil da descoberta."). Não há uma persistência de memória, mas sim de indefinições e desmemórias (que línguas? que rotas? que caminhos? que mapas?). Um espiral de vazio e indefinição que conduz a novos rumos. 

E) CORRETA: A alternativa que melhor revela o conteúdo do poema: o esvaziamento gerado pela viagem do outro abre para o "eu", diante da solidão, a possibilidade de novos caminhos, descobertas, "rumos" - uma via de autoconhecimento e reconhecimento. A viagem e a ausência remetem a um repertório poético tradicional:  as cantigas de amigo do Trovadorismo - Idade Média. No poema, a voz lírica dialoga com essa tradição, ao repercutir a revelação de rumos projetada pela vivência da solidão, conforme apontam os versos:

Também quem fica
procura
um oriente.
Também a quem fica
cabe uma paisagem nova
e a travessia insone do desconhecido
e a alegria difícil da descoberta.



Questão 1778

(ENEM - 2015)

Exmº Sr. Governador:

Trago a V. Exa. um resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos Índios em 1928.
[...]

ADMINISTRAÇÃO
Relativamente à quantia orçada, os telegramas custaram pouco. De ordinário vai para eles dinheiro considerável. Não há vereda aberta pelos matutos que prefeitura do interior não ponha no arame, proclamando que a coisa foi feita por ela; comunicam-se as datas históricas ao Governo do Estado, que não precisa disso; todos os acontecimentos políticos são badalados. Porque se derrubou a Bastilha - um telegrama; porque se deitou pedra na rua - um telegrama; porque o deputado F. esticou a canela - um telegrama.

Palmeira dos Índios, 10 de janeiro de 1929.
GRACILlANO RAMOS

RAMOS, G. Viventes das Alagoas. São Paulo: Martins Fontes, 1962.

O relatório traz a assinatura de Graciliano Ramos, na época, prefeito de Palmeira dos Índios, e é destinado ao governo do estado de Alagoas. De natureza oficial, o texto chama a atenção por contrariar a norma prevista para esse gênero, pois o autor

Ver questão

Questão 1781

(ENEM - 2015)

Um dia, meu pai tomou-me pela mão, minha mãe beijou-me a testa, molhando-me de lágrimas os cabelos e eu parti.

Duas vezes fora visitar o Ateneu antes da minha instalação.

Ateneu era o grande colégio da época. Afamado por um sistema de nutrido reclame, mantido por um diretor que de tempos a tempos reformava o estabelecimento, pintando-o jeitosamente de novidade, como os negociantes que liquidam para recomeçar com artigos de última remessa; o Ateneu desde muito tinha consolidado crédito na preferência dos pais, sem levar em conta a simpatia da meninada, a cercar de aclamações o bombo vistoso dos anúncios.

O Dr. Aristarco Argolo de Ramos, da conhecida família do Visconde de Ramos, do Norte, enchia o império com o seu renome de pedagogo. Eram boletins de propaganda pelas províncias, conferências em diversos pontos da cidade, a pedidos, à substância, atochando a imprensa dos lugarejos, caixões, sobretudo, de livros elementares, fabricados às pressas com o ofegante e esbaforido concurso de professores prudentemente anônimos, caixões e mais caixões de volumes cartonados em Leipzig, inundando as escolas públicas de toda a parte com a sua invasão de capas azuis, róseas, amarelas, em que o nome de Aristarco, inteiro e sonoro, oferecia-se ao pasmo venerador dos esfaimados de alfabeto dos confins da pátria. Os lugares que os não procuravam eram um belo dia surpreendidos pela enchente, gratuita, espontânea, irresistível! E não havia senão aceitar a farinha daquela marca para o pão do espírito.

POMPEIA, R. O Ateneu. São Paulo: Scipione, 2005.

Ao descrever o Ateneu e as atitudes de seu diretor, o narrador revela um olhar sobre a inserção social do colégio demarcado pela

Ver questão

Questão 1782

Primeiro surgiu o homem nu de cabeça baixa. Deus veio num raio. Então apareceram os bichos que comiam os homens. E se fez o fogo, as especiarias, a roupa, a espada e o dever. Em seguida se criou a filosofia, que explicava como não fazer o que não devia ser feito. Então surgiram os números racionais e a História, organizando os eventos sem sentido. A fome desde sempre, das coisas e das pessoas. Foram inventados o calmante e o estimulante. E alguém apagou a luz. E cada um se vira como pode, arrancando as cascas das feridas que alcança.

BONASSI, F. 15 cenas do descobrimento de Brasis. In: MORICONI, I. (Org.). Os cem melhores contos do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

 

A narrativa enxuta e dinâmica de Fernando Bonassi configura um painel evolutivo da história da humanidade. Nele, a projeção do olhar contemporâneo manifesta uma percepção que

Ver questão

Questão 1783

(ENEM - 2015)

Tudo era harmonioso, sólido, verdadeiro. No princípio. As mulheres, principalmente as mortas do álbum, eram maravilhosas. Os homens, mais maravilhosos ainda, ah, difícil encontrar família mais perfeita. A nossa família, dizia a bela voz de contralto da minha avó. Na nossa família, frisava, lançado em redor olhares complacentes, lamentando os que não faziam parte do nosso clã. [...]

Quando Margarida resolveu contar os podres todos que sabia naquela noite negra da rebelião, fiquei furiosa. [...]

É mentira, é mentira!, gritei tapando os ouvidos. Mas Margarida seguia em frente: tio Maximiliano se casou com a inglesa de cachos só por causa do dinheiro, não passava de um pilantra, a loirinha feiosa era riquíssima. Tia Consuelo? Ora, tia Consuelo chorava porque sentia falta de homem, ela queria homem e não Deus, ou o convento ou o sanatório. O dote era tão bom que o convento abriu-lhe as portas com loucura e tudo. “E tem mais coisas ainda, minha queridinha”, anunciou Margarida fazendo um agrado no meu queixo. Reagi com violência: uma agregada, uma cria e, ainda por cima, mestiça. Como ousava desmoralizar meus heróis?

TELLES, L. F. A estrutura da bolha de sabão. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Representante da ficção contemporânea, a prosa de Lygia Fagundes Telles configura e desconstrói modelos sociais. No trecho, a percepção do núcleo familiar descortina um(a)

Ver questão