Questão 58879

(INSPER 2012)

A terceira margem do rio

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente - minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns 20 ou 30 anos. Nossa mãe jurou muito contra a ideia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: – “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: – “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” Ele só retornou a olhar em mim e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo – a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos se reuniram, tomaram juntamente conselho.

[...]

A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele aguentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos – sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim.

[...]

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio – pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice – esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranquilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse – se as coisas fossem outras. E fui tomando ideia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais.

Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: – “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa! . . .” E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto – o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não para, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio.

(ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, Civilização Brasileira, Três, 1974, p. 51-56).

Considere as afirmações sobre o narrador no conto “A Terceira Margem do Rio”

I. Como é personagem e narrador ao mesmo tempo, o filho exerce uma dupla função na narrativa, cujo objetivo é envolver afetivamente o leitor no fato narrado.

II. O caráter contraditório do narrador é ilustrado em “Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte.”

III. Em “Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas?”, o narrador registra pensamentos íntimos dos personagens.

Está(ão) correta(s) apenas

A

I.

B

II.   

C

III.   

D

I e II.   

E

I e III.   

Gabarito:

I e III.   



Resolução:

Apenas é errado o que se afirma em II, pois o personagem-narrador não demonstra contradição ao relatar o fato. Envolvido numa situação que o afeta diretamente, registra também os pensamentos íntimos dos outros personagens como os de sua mãe, enunciados na proposição III, envolvendo afetivamente narrador e leitor que percebe o seu estranhamento perante a situação e se solidariza com a sua angústia.   



Questão 2578

(Insper/2010) Considere a tirinha abaixo. Da leitura da tira, pode-se depreender que: 

 

Português, Literatura e Redação: Análise tirinha Mafalda ...

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Questão 2579

(Insper/2010) Assinale a alternativa correta.

Mafalda cultura ou vestido (com imagens) | Tirinhas, Tirinhas em ...

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Questão 2929

(Insper-2012)

 

A última romântica



Cigarros, isqueiros, copos com drinques coloridos, garrafas vazias - de vodca, do licor de coco Malibu... Às flores, velas, retratos e mensagens de praxe os fãs acrescentaram em frente à casa de Amy Winehouse esses objetos que dão prazer, podem viciar e fazem mal à saúde. Para além da homenagem, era uma forma de participar do universo de excessos da cantora.

É curioso o apelo de Amy num mundo conservador, cada vez mais antitabagista e alerta para os riscos das drogas - um mundo onde vamos sendo ensinados a comprar produtos sem gordura trans e onde até as garotas de esquerda consomem horas dentro da academia. Numa época em que as pessoas são estimuladas a abdicar de certos prazeres na expectativa de durar bastante, simplesmente para durar, Winehouse fez o roteiro oposto - intenso, autodestrutivo, suicida. Sob o aspecto clínico, era uma viciada grave, necessitando desesperadamente da ajuda que insistia em recusar. Uma de suas canções mais famosas trata exatamente disso. Amy foi presa fácil do jornalismo de celebridades, voltado à escandalização da intimidade dos famosos (quanto pior, melhor). Foi também, num tempo improvável, a herdeira de Janis Joplin, morta aos 27 em 1970, e de Billie Holiday, morta aos 44, em 1959, ambas por overdose. Como suas antecessoras, Amy leva ao extremo o éthos romântico - do artista que vive em conflito permanente e se rebela contra o curso prosaico e besta do mundo. Na sua figura atormentada e em constante desajuste, o autoflagelo quase sempre se confunde com o ódio às coisas que funcionam. Numa cultura inteiramente colonizada pelo dinheiro e que convida à idolatria, fazer sucesso parecia uma espécie de vexame e de vileza, o supremo fiasco existencial, contra o qual era preciso se resguardar. Nisso Amy evoca os gênios do romantismo tardio - Lautréamont, Rimbaud e outros poetas do inferno humano, que tinham plena consciência da vergonha de dar certo.
 

SILVA, Fernando de Barros e. Folha de São Paulo, 26/07/2011
 


 Considere esta definição:

Pressupostos são conteúdos implícitos que decorrem de uma palavra ou expressão presente no ato de fala produzido. O pressuposto é indiscutível tanto para o falante quanto para o ouvinte, pois decorre, necessariamente, de um marcador linguístico, diferentemente de outros implícitos (os subentendidos), que dependem do contexto, da situação de comunicação.



Adaptado de FIORIN, J. L. O dito pelo não dito. In: Língua Portuguesa, ano I, n. 6, 2006. p. 3637.



A passagem do texto "A última romântica" em que a palavra sublinhada instaura um pressuposto é

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Questão 6037

(INSPER - 2016) No plano cartesiano ortogonal de origem O (0,0) estão representadas:

- uma circunferência , λ tangente à reta r em T e ao eixo das ordenadas;
- o triângulo retângulo OAT, com A (6,0) e um ângulo externo de medida 120º.

Sabe-se, ainda, que r passa pela origem do plano.

 

 

Nas condições dadas, o raio de λ tem medida igual a

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